terça-feira, 15 de março de 2011

O Defensor e Infrator da Lei


Não é distinto dos filmes de ficção. Mudam-se os tempos, mas os personagens ainda continuam os mesmos: é a mesma elite econômica executando o seu projeto e poder de controle, inclusive qualificando aquilo que pode ser considerado belo ou feio. Ela subjuga o diferente e o humilha, supondo condições de inferioridade étnico-racial, cultural, social...
Durante esta madrugada, fui tomada por um incômodo circunstancial. Este desconforto se sucedeu a partir de um fato. Eu me sentiria negligente, e até conivente, se me calasse diante da opressão do preconceito. Então, dediquei-me a pensar no quanto as coisas mudariam se fizéssemos, efetivamente, uma ação conjunta que se estendesse para além dos nossos interesses pessoais - embora o compromisso com a ética seja um interesse íntimo, de todo indivíduo, ou ao menos se presume ser. Afinal, já não se pode deixar influenciar: são múltiplas as influências - desde a própria vaidade, até os espetáculos do nosso tão grande e ainda pequeno cenário de todo dia.
Digo isto, pois há cerca de um mês, a lembrança de um fato incomoda e me castiga muito. E começo a questionar: conhecimento, para quem? Para que tantos livros em suas prateleiras, se a atuação ainda é de um "selvagem"?
Na verdade, acredito que os selvagens, historicamente distinguidos como tal, poderiam vir a lhe ensinar sutilezas, uma vez que não vivem com a imposição da "falsa civilização" - ainda conservada por um moralismo no qual não creio. Neste dia em questão, tive o desprazer de presenciar um Juiz de Direito (se eu citar, aqui, o seu nome, poderei ser processada) referir-se às negras de um povoado chamado Gameleira, do município de Retirolândia, região sisaleira da Bahia, como "negras feias". Em suas palavras, evidenciou o desconforto e a repugnância de estar entre aquelas mulheres - tão trabalhadoras e cidadãs como ele!
Bem, eu até compreenderia o distanciamento dele deste grupo alegando outros fatores. Afinal, somos indivíduos em adaptação e ainda com muitas limitações. Mas não. A referência do desconforto do Magistrado foi meramente racial e, de certo, derivada do preconceito sócio-econômico-cultural. Uma discriminação explícita para com uma cor (uma gente, uma porção étnico-racial) historicamente marginalizada. Esta mesma cor de indivíduos dignos por seus trabalhos, escravizados, perseguidos, explorados. A cor em questão é a mesma que derramou seu suor para destocar pastos, terras, levantar cercas, limpar suas casas, lavar as vestes dos seus ancestrais - que edificaram esta mesma elite da qual Vossa Excelência faz parte.
Por muitas razões, eu não queria ter testemunhado esta cena sufocada por risos, comentários descabidos e algum silêncio constrangedor. Entretanto, toda a minha vergonha foi por eu estar ali e ter ouvido (de quem deveria ser o “defensor da lei”) que não demorou naquele lugarejo, porque lá só tinha umas "negras feias".
Por eu ser mulher e negra, e sentir muito orgulho do que sou, fui também ferida como todas as demais, que não sofreram o golpe das palavras de Vossa Excelência! E se ainda não fosse negra, sou humana, ativista, tenho consciência política. Porém, diante do olhar do Magistrado, minha "cor marrom" não é "preta". E se não é preta, não é feia, ruim, nem desconfortável. Ele, ao perceber o meu incômodo, tentou o riso de quem conserta, a fala de que eu não me sentisse ofendida (porque não sou "preta"), ou seja: uma emenda muito pior do que o soneto.
Apesar de este Magistrado viver em Salvador, capital baiana, com uma população com maior número de negros(as), ainda assim ele não consegue vislumbrar o mundo para além das paredes do seu condomínio ou da sua sala de audiências. Além das paredes, vivem os negros, pobres, feios, trabalhadores braçais amontoados nas favelas sem infra-estrutura... enfim, nas senzalas modernas!
Isto ocorre, Excelência, porque o Estado vem negligenciando os historicamente discriminados pelas complexas redes do preconceito, existindo somente para defender os que pagam altos impostos - iguais ao senhor, que deve enxergar mais estes pretos quando eles estão como réus nos processos sob a sua égide.
Pois bem, Senhor Juiz. Ao contrário de Vossa Excelência, os negros tomam cachaça ao invés de wisque importado; andam nos “buzões” lotados, ao invés de carros com vidros blindados.
Entretanto, em nada o senhor é melhor do que eles, apesar de - imagino - julgar o contrário.
Quero lhe contar um segredo: espíritos de luz não o são por serem brancos, mas por serem humildes e transparentes. Acredito que a sua enciclopédia em nada falhou, nem os seus DVDs de como se tornar uma pessoa melhor. Mas em nada lhe foram úteis.
Então, caro Magistrado, recomendo que vá morar na Suíça, pois este nosso país é de afro-descedentes! Cerque-se de "brancos(as) bonitos(as)", compre tudo que seu dinheiro puder comprar. Porém, não espere por uma próxima reencarnação para exercer a virtude da tolerância e do respeito indiscriminado, pois ela, certamente, demorará.
Oxalá que todas as cores comungassem, no nosso cenário social, sob a égide do respeito efetivo e sob o mando de uma igualdade mais real do que a escrita na própria Constituição.

Luzes por sobre as trevas do preconceito!

Esta é a sentença.

Érica Santos, poetisa, natural de Retirolândia-BA, é Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).